quinta-feira, 23 de abril de 2015

O escuro do dia

Uma tragédia normalmente tem três partes. A primeira parte geralmente apresenta os personagens e seus sofrimentos, segue-se então para o momento de conflito e, por último, o fim terrível que representa o ápice do sofrimento.

Era isso que eu dizia aos meus alunos, era a minha tese afinal. 

Até o dia em que a minha tragédia pessoal me foi apresentada em seis longas partes. Seis longos pares de pernas: Alice, Luana, Katherine, Paola, Michelle e Elisa. 

Eu tentei teorizar a minha tragédia, sempre tento, é isso que eu faço de melhor... mas era impossível, justamente porque a primeira parte da minha tragédia era a primeira parte cronológica da minha narrativa, mas ela não era nem começo nem fim. Alice apenas era o meu momento de conflito. Ela me fazia hesitar entre a vontade de tocar, sentir com a ponta dos meus dedos a textura daqueles dois centímetros de pele entre a gola da camiseta polo e o começo do cabelo curto.

Mas sabia que não podia. E pela primeira vez na minha vida, saber os limites éticos da minha posição não tornavam as minhas escolhas mais fáceis. Alice era o conflito, e ela passava por mim todo dia com a serenidade de quem não fazia a menor ideia do furacão que se formava em mim toda vez que a sua presença era notada pelos meus sentidos. 

Eu vou tentar não cometer o mesmo crime de todo primata com bolas e culpar a fêmea pelo desejo que se instalara em mim: Alice não tinha um ar provocativo, não passava por mim como quem quisesse que eu iniciasse qualquer coisa, não me lançava olhares e, na única vez em que me dirigiu a palavra, do lado de fora da cantina da Universidade, ela o fez da forma mais casual possível. 

"Professor Lemos, você esqueceu sua pasta no balcão."

E quando me entregou minha pasta, não roçou a mão na minha, não esbarrou no meu corpo de forma lasciva... apenas me devolveu minha pasta e contornou a pilastra do prédio antigo pra encontrar com as amigas que a esperavam para descer a escada. 

Nada disso impedia meu corpo de responder a cada pequena oscilação da sua respiração, e nada disso impedia que quando eu fechasse os olhos no meu estúdio toda noite, ouvindo os barulhos do gato brincando em alguma parte distante da cozinha no outro lado, eu desejasse que fosse a sua mão me infligindo cada um dos golpes que eu infligia a mim mesmo. Nada disso impedia que depois, durante o banho, eu desejasse não ter imaginado Alice. Nada impedia que eu deixasse a vodka apagar apenas o suficiente da culpa pra que eu dormisse e, no dia seguinte, retomasse a minha rotina de admiração e culpa. 

Não demorou muito pra eu começasse a observar, além de Alice, a matilha de pequenas lobas que ela comandava com sua doce presença. Foi ali que eu encontrei Luana, essa sim o começo. 

Luana percebeu meus olhares atentos, minha falsa e pretensa discrição e o excesso de coincidência que sempre me fazia estar nos mesmos cafés, bares e restaurantes que aquela matilha. 

Luana era perspicaz, atenta a tudo por trás dos seus óculos quadrados e não teria deixado a minha vigilância passar, e Luana era tão astuta que só deixou que eu percebesse a sua própria vigilância quando lhe foi conveniente. Entretanto, Luana sofria do mesmo mal que sofrem todas as meninas de vinte poucos anos: queria aventura e romance. Assim sendo, pra minha surpresa, um dia Luana me abordou, foi direta e incisiva, e só então eu entendi que a minha tragédia havia começado ali, com ela. 

"Se você continuar me seguindo assim, vão achar que você está apaixonado."

Luana achava que era ela que me fazia ir a todos os cafés, bares e restaurantes e agir como um completo imbecil. Obviamente não era, mas obviamente eu não ia deixá-la descobrir. 

Começaram assim o que seriam três meses de sexo nas bibliotecas, becos atrás de bares e salas de aula desertas. Aos poucos Alice havia se transformado em uma sombra, eu estava vivo de novo. Nada melhor pra fazer um homem de quarenta e poucos anos se sentir vivo que o calor que se esconde entre as pernas de uma mulher jovem, nada melhor que os olhares furtivos, nada melhor que o perigo do romance proibido. 

Luana teve a sua aventura, e se cansou dela na mesma medida. O sexo tornou-se automático e pouco interessante, até pra mim que só tinha como parâmetro recente minha mão calejada. 

"Se você continuar me seguindo, eu vou a Reitoria."

E assim eu fiquei sem Luana, fiquei sem Alice também. Perdi a inocência dos gestos e a perspicácia dos olhares. Me senti miserável por algumas semanas, bebi tudo que podia, perdi algumas aulas, deixei a barba crescer e, finalmente, fui cordialmente convidado pela Coordenadora de Graduação à tirar uma licença médica, da qual eu só seria liberado depois de apresentar o laudo de uma psicóloga. 

Eu achava que sabia o que era conflito, mas só percebi que não sabia o que era isso quando me vi dentro daquele consultório que me fazia sentir asfixia, calor, claustrofobia. 

Conflito pra mim não era mais a sensação de querer ter e tocar Alice e não poder. Conflito era querer calar a boca, parar de me expor, parar de cuspir cada pedacinho de mim em cima daquele sofá sob o olhar duro de Katherine e não conseguir. Conflito era a sensação de conforto que surgia dentro de mim imediatamente depois que eu achava que ia partir ao meio por me expor tanto... Eu não desejava Katherine, não queria casar e ter filhos com ela, não sentia nenhum amor por aquela figura feminina, mas pouco a pouco eu não conseguia viver mais sem ela. 

Onde mora o conflito? O conflito mora naquela pequena casa barulhenta, sem portas e nem janelas, a casa da qual você não pode sair simplesmente por não saber como entrou. E eu me sentia preso nessa casa na presença da impassível Katherine. Ela não me aconselhava, ela não me julgava, ela me fazia perguntas, muitas perguntas, e às vezes nem isso: ela só me olhava e eu continuava a falar, falar, e falar.

Katherine me deu apenas um conselho, me disse que eu deveria sair e conhecer mulheres da minha idade, alguma coisa que ia me ajudar a superar a minha fixação por moças mais novas. E eu não sabia que era fixado em moças mais novas, mas aceitei o conselho. 

Achei o fim, finalmente, o fim era a Paola. Paola me levava para degustar vinhos, falava sobre arte, entendia as minhas longas falas sobre a tragédia e o amor, se excitava quando eu falava sobre a vida de um jeito mais filosófico e não sabia nada sobre a minha vida anterior a ela mesmo. Não se interessava. Paola era uma tigresa. Tinha movimentos lentos, e era especialmente felina no quarto, tinha todos os sentidos apurados e transformava o meu corpo em um instrumento que só ela sabia tocar. 

Paola me fez viver intensamente uma história de amor incrível. Incrivelmente breve também. Paola, semanas depois da primeira taça de vinho juntos teve a gentileza de confirmar seu papel como meu fim terrível numa breve mensagem: "conheci Michelle e me apaixonei. Espero que você entenda."

Eu entendi, sempre fui ótimo em entender tudo. Katherine me disse que eu não podia culpar ninguém, nem a mim mesmo, pelo jeito como as coisas aconteceram. Que eu precisava deixar a vida agir em mim do mesmo jeito que eu queria agir na vida... ou qualquer besteira dessa. 

Eu não gostei disso, como assim eu não podia culpar Michelle por tirar a minha tigresa de mim? Odiei particularmente o fato de ver, alguns dias depois, Paola e Michelle juntas. Michelle, que até então eu tratava como uma variável completamente desconhecida, era a secretária do departamento de línguas da Universidade. 

Eu já havia trocado duas ou três palavras com ela na última confraternização de fim de ano, tinha tentado chamar a atenção daqueles olhos verdes e convencer ela a passar a noite comigo nesse mesmo evento, mas a única resposta que recebi foi um vago "Você não é bem o que eu procuro". E agora eu tinha entendido porque. Elas estavam ali, duas mulheres completamente atraentes e completamente apaixonadas. Eu queria não existir, e quando elas me viram e, educadamente, seguiram seu caminho em direção à cafeteria no final do campus, quis segui-las. Senti falta da culpa que eu sentia depois de gozar pensando em Alice, senti falta do corpo quente de Luana e do sofá acolhedor de Katherine. Senti falta dos movimentos felinos de Paola e até mesmo da indiferença da Michelle... 

Dei meia volta e, sentada num banco me observando com uma curiosidade pueril estava Elisa. Minha aluna mais brilhante, havia deixado a universidade com todas as honras e, eu me lembrava da formatura dela, da primeira turma que eu vi se formando aqui, como se fosse ontem. 

Eu sabia que ela havia conseguido uma bolsa em algum país da Europa, todos no campo se conheciam e todo mundo sabia sobre os novos prodígios que apareciam aqui e ali... ela era um deles, e eu me orgulhava em especial por me lembrar de como ela movimentava todas as discussões com profundidade e ardor. Ela tinha um calor no olhar que fazia todo mundo ao redor querer se envolver em seus assuntos, devia ser carisma.

Era o mesmo calor que fluía daqueles olhos e inundava o meu estômago, fazia meu corpo ficar quente e nervoso. Eu era contemplado pelo começo da minha tragédia de novo. Ela era Elisa, e era Luana também. 

A coisa com as tragédias é que elas têm um apelo particular pra cada uma de suas vítimas. Não se escapa a uma tragédia, elas são cenas maravilhosas que nos paralisam por um segundo antes de nos despertar a vontade de mergulhar. Eu fui, abracei o último pedaço da minha tragédia com o mesmo amor que abraçara todos os outros, sabendo que ela estava pronta pra me consumir. 

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